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Resenha | Todo Mundo Vê Formigas - A. S. King

12:17Henrique Machado

FICHA TÉCNICA

Nome: Todo Mundo Vê Formigas
Autora: A. S. King
Páginas: 240
Gênero: Ficção | Juvenil | Young Adult
Ano: 2016
Editora: Gutenberg
Sinopse: A 1ª coisa que você precisa saber é que tudo o que eu fiz foi uma pergunta idiota. A 2ª coisa que você precisa saber é que essa pergunta idiota me trouxe muitos problemas com Nader McMillan, o cara que faz bullying comigo desde que eu tinha 7 anos. E uma semana atrás ele pegou bem pesado comigo. Foi aí que eu comecei a ver formigas. A 3ª coisa que você precisa saber é que meu avô Harry desapareceu durante a Guerra do Vietnã e nunca foi encontrado. Então, todas as noites, eu tento resgatá-lo da sua prisão na selva em meus sonhos. Mas nunca consigo. A 4ª coisa que você precisa saber é que minha mãe é uma lula e meu pai, uma tartaruga. Ela tenta afogar os seus problemas nadando o dia todo em uma piscina pública, e ele nunca está por perto e desaparece dentro da casca no primeiro sinal de confronto. Então, se juntarmos Nader McMillan, a minha pergunta idiota, vovô, e tudo o mais na minha vida, somos só eu e as formigas.


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"Minha mãe uma vez me disse que ela é uma lula reencarnada. Talvez ela pense que, se for uma lula, ela não vai ser engolida pelo vazio em nossa família. Talvez ficar imersa em um milhão de livros de água o tempo todo torne o vazio mais confortável."

O quanto de nós precisamos perder para que sejamos capazes de confrontarmos os demônios de nossa vida? Quantas vezes precisamos perder até descobrimentos que merecemos mais do que isso? Será que possuímos vidas o suficiente para permitir que o controle de nós mesmos nos seja tomado?
A minha leitura de “Todo Mundo Vê Formigas” representa uma daquelas experiências em que um turbilhão de sentimentos e sensações é responsável por uma dificuldade ainda maior em definir com precisão o que sinto por esse livro. Entre momentos de emoção e excitação, e momentos de decepção e impaciência, encontrei na história de Lucky Linderman o que eu não encontrava a tempos: uma obra capaz dividir minhas próprias opiniões. 

Se em um momento A. S. King faz uma seleção de temas que precisam ser tratados na literatura, em especial na juvenil (ou young adult), em outro, a sua vontade de reuni-los em um único livro com pouco menos de 250 páginas resulta em uma abordagem superficial, perigosa e, de certa forma desrespeitosa. No entanto, tenho que admitir, minha atenção foi atraída para a obra até que eu pudesse completar a leitura.

O livro que divide suas páginas em diferentes perspectivas temporais e entre a realidade e o mundo dos sonhos, conta a história de um garoto que vê sua vida ser, de certa maneira, tomada de si após uma longa sucessão de fatos atormentadores, como o bullying desumano, o distanciamento do pai, a morte da avó e a incerteza da vida ou morte do avô. O garoto, Lucky, tem sorte apenas em seu nome, e descobre ao longo do livro o quão inocente ainda é, e o quão negligente ele se tornou com sua própria realidade. Não por uma escolha própria, é claro, mas como resultado dos traumas que deixaram cicatrizes em seu corpo e em sua mente.


"Fico deitado por um tempo, me sentindo como um herói da selva. Mas então escuto meus pais conversando na sala de estar, e então me lembro que sou na verdade a porcaria de um fracassado do subúrbio."


A ficção opta por trazer detalhes fantásticos à narrativa, mas falha em priorizar aquilo que de fato é relevante. Enquanto a autora parece focada em determinar o formato do machucado do garoto em sua bochecha, comparando-o com regiões dos EUA, esquece de desenvolver as temáticas centrais que dão força à sua história. Deixa de lado a importância de se dar atenção a temas como suicídio e bullying – pontos chaves de toda a obra -, tratando-o como temas um tanto quanto superficiais, dando soluções, de certa maneira, grotescas.

O que descrevi no parágrafo anterior pode ser visto no momento do livro em que Lucky encontra na musculação a sua força para enfrentar o mundo. Não há nada de errado em fazer algo que goste, que lhe dê prazer. Na verdade, esse é um ponto chave para se ter controle da própria vida. Entretanto, a solução proposta pela autora parece negligenciar a complexidade e a importância das temáticas que ela mesma escolheu por agregar em sua história. Além disso, nesse mesmo momento, vemos um discurso machista e sexista que coloca as mulheres apenas como objetos a servirem ao prazer masculino. Esse discurso é proferido inúmeras vezes, algumas em forma de problematização e outras de maneira bastante controversa, principalmente quanto o Tio Dave insiste em dizer que se Lucky ficar "sarado" as meninas vão "cair em cima dele".

Crescer, desenvolver-se e viver não são tarefas fáceis, ainda mais se no meio de tudo isso nos deparamos com obstáculos que nos ferem e deixam marcas permanentes. A necessidade de encontrar uma saída vem para todos e, justamente por isso, o estupro, o abuso, o machismo, o suicídio, o bullying e outras tantas temáticas não devem ser tão negligenciadas, em especial quando são elas a fundamentar toda uma narrativa. Quanto a isso, temo que A. S. King tenha feito escolhas infelizes no que se trata de “Todo Mundo Vê Formigas



"E fingir me traz até aqui. Fingir me faz ficar suando de nervoso toda vez que alguém tem uma conversa sincera comigo. Fingir me faz ter um medo irracional de que essa pessoa possa dizer alguma verdade sobre mim. Fingir me faz não conseguir lidar com a verdade. Mesmo que ela seja engraçada."


Entretanto, apesar dos pesares, encontramos em seu livro uma narrativa capaz de nos prender e intrigar. Vemos um garoto de 15 anos se desenvolver e se encaminhar para uma estrada difícil, mas finalmente capaz de tomar as rédeas de si. Vi Lucky aprender sobre como a vida pode ser um mar de espinhos para todos e que cada um de nós carrega, seja embaixo de nossas roupas e peles, ou em um lugar escuro dentro de nossa existência, as cicatrizes das mazelas da vida as quais somos expostos contra nossa vontade. Todavia, o que de fato foi responsável pela minha intriga para com a história não foi a narrativa principal. O protagonista, desde o início, me causou certo ranço - e vale lembrar que, independente dos problemas que possuímos, isso não nos dá o direito de sermos babacas ou ironizarmos temas importantes. Dessa forma, não pude deixar de completar a minha leitura apenas pelo interesse nas histórias em segundo plano, que poderiam ter sido melhor desenvolvidas, e renderiam personagens ainda mais profundos e interessantes - mais ainda que o próprio protagonista. 

Vemos numa história onde a realidade se funde com a ficção, o encontrar da força de um personagem, que no final das contas é só um menino, mas um menino que está finalmente trilhando seus passos para ser um homem. Infelizmente esse desenvolver da personagem é bastante apressado e dúbio. Duzentos e cinquenta páginas jamais dariam conta da complexidade que tal história abarca, pelo menos não com a quantidade de detalhes e temáticas que a autora optou por introduzir.

Não me entenda mal, não se trata de uma literatura completamente ruim – a proposta é de fato interessante. A questão é que se trata de um livro cuja opção por não dar a devida importância para os temas escolhidos, a inserção de discursos machistas, sexistas e ironizantes, a presença da automedicação inconsciente e o descaso para com os demais personagens - cujas narrativas pessoais representam problemas constantes na vida em sociedade -, o torna uma narrativa um tanto quanto perigosa. Tais problemas não são resolvidos facilmente, como o livro dá a entender em certa medida. Incitar em alguma medida a automedicação de antidepressivos, independentemente da circunstância apresentada não é saudável, tampouco correto. Dessa forma, sinto-me inclinado a dizer que fora um livro muito abaixo da média, me decepcionando como nunca nenhum outro livro fez. 



"Ela dizia: 'O mundo está cheio de babacas. O que você está fazendo para ter certeza de que não é um deles?'"


Todo Mundo Vê Formigas” é um livro capaz de intrigar e de prender nossa atenção, mas ao mesmo tempo foi capaz de me provocar indignação e decepção. Iniciei a história com uma expectativa relativamente baixa, e infelizmente essa expectativa foi cumprida. Não é uma literatura destinada a qualquer público e pode sim apresentar triggers para alguns indivíduos. É um livro capaz de dividir opiniões, sem dúvidas, mas também um livro que deve receber um cuidado especial na hora de se tornar parte da rotina literária de alguém.

Por fim, Lucky teve a sorte de agir no último minuto, mas toda a situação poderia ser muito pior. O número de suicídios entre jovens é preocupante, assim como os casos de bullying e os abusos para com as mulheres - e não nos esqueçamos das famílias que perdem seus entes queridos numa guerra, e as outra tantas que jamais recebem uma resposta sobre o que aconteceu. Não podemos virar os olhos para nenhum desses assuntos, assim como podemos e devemos agir para prevenir que mais e mais pessoas sejam feridas nessa dura batalha é a vida. Denuncie, se imponha, e o mais importante, saiba que a culpa não é sua! Não vamos permitir que mais vidas sejam tomadas por decisões infelizes e ações de trogloditas. O mundo jamais será perfeito, mas temos a responsabilidade e o dever de torna-lo um lugar mais saudável para se viver. 


Acervo pessoal

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